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segunda-feira, 17 de março de 2008

finita melancolia

todos os cânticos no gume lunar da água
recolhe a noite da remota língua
que te deixo como herança este aro de ferro
esta quilha de ventos apagando a memória
onde a topografia da morte nos aprisionou

a cinza das horas veste o ferido corpo
abandonado na milenar paisagem de grafite
fulgura o indício do magoado desejo
na densa escuridão dos teus passos


l


ergue-se a tarde do mar e sepulta
o corpo que recusa as notícias do mundo
e na corda azulínea das ondas arde o olhar
daquele que de ti se aproxima insone

talvez não haja mais palavras depois
deste últimos versos o rosto esquecido
contra o vidro a unha rasgando o nome
na poeira indica ao cansado navegante
o límpido plâncton da morte


l


o mínimo de tinta dentro da palavra
faz vibrar o eixo do tempo: a casa
onde o rumor procurado se ouve tímido
em teu peito adormecido como um rio

nos confins minerais do corpo nada impede
a floração quente da terra ou a tristeza
que na plúmbea água reacende a vida e
no limiar das obscuras mãos faz tremer
o coração da finita melancolia


l


o olho avança espiando a escuridão
sobre a pele vibra a boca daquele
que fala com uma víbora na língua
seduzindo o que no silêncio escuta

a dor vem como um estilete perfura
o xisto das artérias onde estrelas turvam
os sentidos daquele que escrevendo mata
o que escuta e o que fala

tudo se dilui na cegueira lenta de querer
o que dos corpos a escrita tenta guardar:
pequenos ossos caídos no fogo das emoções


l


os ombros queimados pelos negros sinais
duma idade em que a fala e os gestos
transbordavam cúmplices de um para o outro

levantas por fim a carta recebida ontem
contra a luz fosca da janela descobres
mil presságios na rubra poeira da tarde

regressas depois aos corpos e às cidades
enroscadas em sórdidos quartos onde pernoita
o amargo medo desta década sem paixão


l


o resplendor do sangue sufoca-te a boca
que já não pergunta nem responde nem sorri
e o sopro dos oceanos atordoa-te o corpo
naufragado na fímbria dos meus sentidos

imagina agora uma flor ou um revólver
na hulha nocturna disparando sémen ou
uma bala de ouro perfurando o peito
daquele que soube fingir a felicidade

e no centro dos seus olhos o poço
onde agoniza tua cabeça de cinza
iluminada


l


vivemos hoje num corpo cego e voraz
onde nenhuma cicatriz brilha ou fissura
a misteriosa memória da paixão arruinada

pernoitamos onde nos deixam e o coração
não é um relógio nem um espelho nem
a gazua para abrir venenosos segredos

ninguém dançará de alegria
sobre os vestígios incandescentes
de nossa alma carbonizada



al berto
finita melancolia
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990

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