Só para loucos.
(...)
Não há caminho nenhum que conduza atrás. No principio de todas as coisas não há inocência nem ingenuidade; tudo o que é criado, mesmo aquilo que parece simples, já de si é culpado, multifacetado, lançado na torrente lamacenta da evolução, e nunca mais poderá subir a corrente. O caminho da inocência, do incriado, de Deus, não conduz atrás, mas adiante, não conduz ao lobo ou à criança, mas sempre mais adiante na culpabilidade, sempre mais fundo na criação humana. Mesmo o suicídio, pobre Lobo das Estepes, não te servirá de grande coisa, hás-de sempre ter de seguir a via mais longa, mais penosa e mais difícil da criação humana, ainda hás-de ter de multiplicar muitas vezes a tua dualidade, complicar muito mais a tua complexidade. em vez de restringir o teu mundo, de simplificar a tua alma, hás-de ter de chamar a ti cada vez mais mundo, e finalmente terás de chamar a ti o universo inteiro ao seio da tua alma dolorosamente expandida, talvez para um dia alcançar repouso, o fim. Foi este o caminho trilhado por Buda, trilhado por todos os grandes homens, uns consciente, outros inconscientemente, tanto como o seu temerário empreendimento os pôde levar. Cada nascimento significa a separação do todo, significa delimitação, demarcação de Deus, renovação dolorosa. Regresso ao todo, suspensão do torturante individualismo, transformação em Deus significa: ter alargado a sua alma até ela conseguir de novo abraçar o todo.
Aqui não se trata do homem que a escola, a economia nacional e a estatística conhecem, nem do homem tal como anda aos milhões por essas ruas fora, e que não é de considerar diferentemente da areia da praia ou dos salpicos da rebentação: uns milhões a mais, uns milhões a menos, pouco importam, é tudo material mais nada. Não, aqui falamos do homem no sentido elevado, da meta ao longo do caminho da transformação humana, do homem soberano, do imortal. O génio não é tão raro como muitas vezes nos quer parecer, e sem dúvida também não é tão corriqueiro como o fazem crer a história da literatura e do universo ou mesmo os jornais. o Lobo das Estepes Harry teria, parece-nos, suficiente génio para tentar a corajosa aventura da transformação humana, em vez de a cada obstáculo se entrincheirar, choroso, atrás do seu imbecil Lobo das Estepes.
O facto de homens com possibilidades dessas recorrerem a lobos das estepes e a "duas almas, Oh!" é tão surpreendente e confrangedor como o cobarde amor que tantas vezes nutrem pelo burguesismo. Um homem que é capaz de entender Buda, um homem que tem uma presciência dos céus e abismos da humanidade, não deveria viver num mundo em que reina o comon sense, a democracia e a educação burguesa. Só por cobardia o habita, e quando as sua dimensões o oprimem, quando a apertada divisão burguesa se torna demasiado opressiva, atira as culpas para o "lobo" e não quer saber que o lobo por vezes é aquilo que tem de melhor. A tudo o que em si alberga de selvagem, chama lobo e julga mau, perigoso, espantalho burguês - mas ele, que afinal crê ser artista e possuir sentimentos apurados, não consegue discernir que para lá do lobo, para trás do lobo, ainda existe em si muita outra coisa, que nem tudo o que morde é lobo, que há ainda a contar as raposas, os dragões, os tigres, os macacos e as aves do paraíso. E que todo esses universo, todo esse jardim paradisíaco de figuras belas e horrendas, grandes e pequenas, fortes e delicadas, é esmagado e encarcerado pela lenda do lobo, da mesma maneira que o homem verdadeiro que nele existe é esmagado e encarcerado pelo pseudo-homem, pelo burguês.
Imaginemos um jardim, com centenas de árvores das mais variadas, milhares de flores das mais variadas, centenas de frutos, de ervas das mais variadas. Se se dá o caso de o jardineiro desse jardim não conhecer outra diferenciação botânica que não seja e de "comestível" e "erva daninha", então não saberá lidar com nove décimos do seu jardim, arrancará as flores mais encantadoras, abaterá as árvores mais nobres ou pelo menos há-de odiá-las e olhá-las de través. Assim age o Lobo das Estepes para com os milhares de flores da sua alma. O que não cabe nas rubricas "Homem" ou " Lobo" , isso nem sequer vê. e a quantidade de coisas que atribui ao "Homem"!? Todas cobardias , macacadas, idioteiras, e mesquinhices, desde que não sejam propriamente bestiais, tudo isso faz caber no humano do mesmo modo que refere ao lupino o que é força e nobreza, unicamente porque ainda não foi capaz de se tornar seu senhor. (...)"
O facto de homens com possibilidades dessas recorrerem a lobos das estepes e a "duas almas, Oh!" é tão surpreendente e confrangedor como o cobarde amor que tantas vezes nutrem pelo burguesismo. Um homem que é capaz de entender Buda, um homem que tem uma presciência dos céus e abismos da humanidade, não deveria viver num mundo em que reina o comon sense, a democracia e a educação burguesa. Só por cobardia o habita, e quando as sua dimensões o oprimem, quando a apertada divisão burguesa se torna demasiado opressiva, atira as culpas para o "lobo" e não quer saber que o lobo por vezes é aquilo que tem de melhor. A tudo o que em si alberga de selvagem, chama lobo e julga mau, perigoso, espantalho burguês - mas ele, que afinal crê ser artista e possuir sentimentos apurados, não consegue discernir que para lá do lobo, para trás do lobo, ainda existe em si muita outra coisa, que nem tudo o que morde é lobo, que há ainda a contar as raposas, os dragões, os tigres, os macacos e as aves do paraíso. E que todo esses universo, todo esse jardim paradisíaco de figuras belas e horrendas, grandes e pequenas, fortes e delicadas, é esmagado e encarcerado pela lenda do lobo, da mesma maneira que o homem verdadeiro que nele existe é esmagado e encarcerado pelo pseudo-homem, pelo burguês.
Imaginemos um jardim, com centenas de árvores das mais variadas, milhares de flores das mais variadas, centenas de frutos, de ervas das mais variadas. Se se dá o caso de o jardineiro desse jardim não conhecer outra diferenciação botânica que não seja e de "comestível" e "erva daninha", então não saberá lidar com nove décimos do seu jardim, arrancará as flores mais encantadoras, abaterá as árvores mais nobres ou pelo menos há-de odiá-las e olhá-las de través. Assim age o Lobo das Estepes para com os milhares de flores da sua alma. O que não cabe nas rubricas "Homem" ou " Lobo" , isso nem sequer vê. e a quantidade de coisas que atribui ao "Homem"!? Todas cobardias , macacadas, idioteiras, e mesquinhices, desde que não sejam propriamente bestiais, tudo isso faz caber no humano do mesmo modo que refere ao lupino o que é força e nobreza, unicamente porque ainda não foi capaz de se tornar seu senhor. (...)"
excerto do Tratado do Lobo das Estepes - Só para loucos
Do livro "O LOBO DAS ESTEPES" de Hermann Hesse
rene magritte paintings
4 comentários:
encontrar aqui o H. H. não me surpreende....:)
e "derrete-me".
vais. eu cheguei de lá. tb parto breve. para outros nortes...
levo-te.
como não?
bons tempos a norte. é o que desejo. dentro do meu melhor abraço.
até logo. MiEEEEEEEEEEEEEEEE.
Um grande escritor e um grande humanista!
...aquele que vive rodeado de flores dificilmente se adapta ao deserto total.
Um belíssimo excerto que nos ofereces!
:) Bjs
só hoje li este fabuloso excerto de um autor que aprecio e que tanto gostei de ver aqui no roads. um grande beijinho, mié*
O mundo é grande, mas em nós
ele é profundo como o mar.
Rilke
(sempre a encontrar novos mundos ... admiráveis mundos)
Bj* de Boa Páscoa
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