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segunda-feira, 31 de março de 2008

Amadeu Baptista




Conheci-o só agora. rendo-me.

extraordinária.mente iluminada nas palavras que nos dá.

Luz e Sombra a palavra explode. una nua crua
transfigura-se
imolada no altar do pressentido.sentido.

voo de águia, solitária.
fere de agudo gume de fogo e mar_______sal do sangue.




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KEFIAH

Procurarás esse nome no fluxo silencioso
da solidão, mas ninguém te responderá.

Procurarás no iniludível estremecimento da noite,
no vagaroso rumor que se desprende do fogo, no rosto
inverosímil que se oculta na sombra, mas ninguém te responderá.
A tua casa
são quatro paredes de silêncio,
uma ausência que se perpetua cada dia que passa, o ciclo
de uma luta sem tréguas golpeando-te a respiração e a saudade
de tudo o que perdeste para sempre, mas conservas ainda
no coração aberto.

Abres o pão das tuas sílabas indecisas e que tencionas barrar
com a geleia da vida uma vez mais, fechas
na gaveta um pouco dessa escuridão que desce pela tua face,
atiras para trás
o lençol porque o calor crepuscular afoga os teus soluços,
mas ninguém
te responderá.

Não és quem és, um homem na encruzilhada, essa interrogação
que te palpita nas mãos, a última personagem
de um capítulo onde a asfixia exerce o poder de coagir sobre
o teu sofrimento; não és
quem és, cinza e ruínas convertidas em recordações e esperança,
aquele que ama transgressoramente, esse cúmplice
que pede à própria sombra uma réstia de sombra – desesperante,
o silêncio arrasta atrás de ti a revelação dos prisioneiros,
gente cansada que espera que a insolúvel labareda se levante,
a ponta de dor que poderia aplacar os teus gritos infinitos.

Choras – sabes que algures no mundo não haverá quem partilhe
contigo
a mesma solidão, a última aposta sobre o pano verde da vida,
o último dado a equacionar enquanto os nervos te travam
a pulsação no pescoço, as aves que te esperam na brisa,
a expectativa de um último plano fascinante
antes que a inquietação
da misericórdia dê conta dos ângulos mais agudos da tua insónia
ancestral.

Mas ninguém te responde – a chuva amarga cai sobre
o incêndio dos teus cabelos, continuas a discorrer uma oração
sem motivos de esperança, o fulgor
dos ferros atravessados na luz do teu espírito.

A ausência vem visitar-te cada noite, visita-te quando recebes
o olhar estonteante da rapariga dos teus sonhos, visita-te
quando cresces para o mar com a raiva concentrada na garganta
e pronta para o grito – mas não gritas, apenas o fascínio
da memória devolve a vertigem
da tua silhueta recortada pelo mar.

Um peixe esgota-se no areal, a tua mãe passa, foge de ti,
diz que não te conhece,
acompanha-la à campa, tomas
um pouco de terra e atira-la com força à sua urna, tens frio,
agora as tuas lágrimas estão em fogo, queimam-te os olhos
com a imagem omnipotente do teu pai
envolvido numa luta de morte com um homem armado
de um punhal
– gumes,
um labirinto de pântanos é o que resta do segredo
das tuas expectativas:
aí está novamente a mulher
exercendo o poder divino sobre a fragilidade da tua teia verbal,
ninguém, ninguém te responderá,
o arrebatamento dessa paixão é um território de cinzas
e perplexidade,
o campo de minas
que atravessas com o medo pulsando sob a língua, o esmeril
da tristeza trabalhando sobre a angústia como a realidade
trabalha
sobre ti e sobre os que te são semelhantes.

Uma coluna de incenso ergue-se a teus pés, a cidade
mergulha no ar sufocante de um sol tórrido e implacável,
reina o silêncio
entre a linha das muralhas, as moscas invadiram os últimos
panos de sombra
dos subtis movimentos da tua unção carnal – áspera, a claridade
é uma pérola perdida nos átrios do silêncio, um fósforo
abandonado
no primeiro degrau de uma escada sem fim, o brilho fragílimo
que te poderia conduzir à primitiva fonte da tua natureza,
onde apenas a memória poderia tocar o universo em trevas
das tuas mãos vazias, apenas a indistinta memória
de um episódio nebuloso da infância
te conduziria ao abismo de um sonho, fogueira e litoral
do deslumbramento.

Não jogaste, tudo jogaste e perdeste – a melodia levanta-se
nos ouvidos, não dormes,
o pesadelo uiva em cima dos móveis, há facas que nascem
das paredes
e te ferem o corpo, um cão de louça
vigia os teus lentos e doridos movimentos entre a penumbra –
queres soltar um grito que quebre esse êxtase lacerante, mas
um lápis irrompe dos teus cabelos,
ninguém te responderá, a vítima repousa sobre a ara, espera
o início do ritual, a faca mágica do sacerdote, as sílabas cavas
lançadas sobre o cadáver pútrido de um pássaro.

A energia deslaça-se dos teus braços, os lábios balbuciam
um nome impronunciável, longínquo,
escuta-se o rumor de um rio perdido, o crepitar da desolação,
a pergunta
inverosímil que rasga o mundo subterrâneo dos sentimentos –
és agora uma criança
que disputa uma laranja a outra criança, tens no bolso
uma fita vermelha, um frágil ramo de ilusões, alguma doçura
inocente; um odor acre sobe-te pelo nariz, alguém
te afaga o sexo, gemes na escuridão, um homem morre
parado no tempo impenetrável, batem-te, vejo que te batem
violentamente,
o sangue solta-se, espalha-se pelas paredes, fixas
o olhar nesse desenho incompreensível mas de uma magia
avassaladora,
estás só, o mar chama-te, concentras
a atenção na força da rebentação, o corpo
de uma mulher é trazido pelas ondas, um cigano
passa puxando uma mula branca carregada de cestos, o silêncio
opera os seus obscuros presságios, o ar febril da noite
entrega-te nu e inocente às margens fragmentárias
da existência.

Procuras um nome, procuras a solidão de um rosto, uma árvore,
procuras
o arquipélago alucinado
de uma palavra inscrita no lume das tuas mãos;
procuras a tenacidade do sangue, o amor fortalecido
pela proximidade do perigo, o preço da verdade
que germina no vaso sagrado dos que viajam
com a bagagem restrita dos que procuram, mas a quem ninguém
responde.

O solitário não renuncia à solidão quando procura, o solitário
conhece a respiração do chacal no refúgio da noite, acende
contra os lobos
o fogo da salvação, pela solidariedade do silêncio;
o solitário é o que contempla a renúncia de uma palavra
na limpidez
da página e ama a solidão com a imparcialidade
de quem acusa os que se imobilizam na cisão
dos enigmas –
a dor comprometeu definitivamente a vida, não há salvação
possível, o resplendor estaca
no bloco calcinado dessa água que arde; a rede
de dúvidas que poderia estancar o caudal de protestos
que nos corre nas veias,
a grade de frio que ocupa os pensamentos, o ardor
visível nos nossos olhos, não responde às nossas perguntas
antiquíssimas,
a herança de choro
que nos foi legada pelo desejo e pela ansiedade:
o conflito está aberto, ó desalento, o abandono é a ave
de incrudelidade
que nos esmaga os crânios, o açor
que nos eleva do abismo e nos larga do cume da montanha
para que voltemos
ao pó,
ao pânico da queda,
à força do impacto no solo,
como se transportássemos nos ombros todo o peso do mundo,
a realidade
aterradora que inebria e ilude.

O frio escalda, o sangue asfixia sob a pele, um clarão
alastra pela casa –
é um nome que procuras nesse nome ensanguentado
que vem devorar-te
as mãos, o rosto exausto, a dor disseminada pelos rins
iluminando-te as entranhas, a amargura e a angústia, a palavra
indecifrável
que obsessivamente te atormenta, o animal rastejante
que corre no recife, o sobressalto atingindo-te o coração,
as mãos
metamorfoseando-se em pássaros negros e invisíveis, a tatuagem
que risca o âmago do teu ser perplexo, a armadilha
com que esperaste colher a luz do apaziguamento;
é um nome que procuras, um murmúrio indelével, o rito
sagrado do milagre do sol, a bruma ou o esvaimento, o tumulto
que a rebelião faz desfilar sob os teus olhos amargos, esse rio
de dúvidas
que tudo arrasta, a face prostenada da inocência, o longínquo
rumor
da festa, a coroa de pedra
que resplandece nas trevas; uma lágrima avança pelo teu rosto,
os lábios
contraem-se de solidão e de medo, o massacre progride
sob a acção
da surpresa: nenhum resgate
para o talismã perdido no deserto, nenhuma árvore no horizonte
– apenas as tuas sílabas frágeis
resistem no campo solitário, guerreiro cego aguardando o sinal
para abater ou ser abatido, em nome da maldição
e do esquecimento.

Sobrevivemos acossados, o mar como única fronteira, deserto
e reminiscência do labor da alegria, soldados entrincheirados
esperando a bandeira neutral da morte, o retorno às origens,
o sal do sangue,
as costas voltadas para a fosforescência da pureza,
uma tristeza de matizes carregados pelo vínculo
de uma cumplicidade espoliada e incorrespondida.

Sobrevivemos na rebelião transfigurada, adubo e excremento
dos que sangram, energia debilitada esperando que alguém
chegue,
partilhe do nosso pão, durma na nossa cama
e dê um passo em frente, em direcção à nossa sede apaziguada
pelo vinagre,
a ferida aberta de onde jorra sangue e água purificadora, a coroa
de espinhos perfurando-nos as têmporas, o chicote
queimando-nos o dorso arquejante.

Escuta-me o silêncio, tímpano oceânico e sentinela obscuro
dos que ao relento armadilham as criaturas da alvorada, o eco
de um sussurro que vem de um lugar onde o sacrifício
não foi suficiente
para aplacar a ira das entidades fantásticas
que dominam o voo nocturno das paixões
e a harmoniosa elasticidade dos mastins;
escuta-me o silêncio,
tu que podes ainda perdoar e retroceder, tu que esperas
a nossa rendição incondicional,
tu a quem pedimos para exercer a roda do destino
a nosso favor sem que nos queiras atender, misericórdia
sem misericórdia pelos que vão lacerados por uma culpa
que lhes não pertence,
malditos
inflamados pelo baptismo de guerra que nos foi concedido, furor
preso à cintura como o sabre dos que nos executam
e que por interposição do nosso nome
recebem o oiro por que jamais nos venderemos – escuta-me
o silêncio,

escuta-nos,

porque há um nome definitivo que nos espera, uma pedra
cintilante e um cântico magnânimo
no fluxo mágico da terra e no derradeiro sol da angústia
dos que procuram a estrela ignorada, o astro impossível

que se oculta no obsessivo mistério
da nossa solidão desesperada.

Amadeu Baptista

4 comentários:

Anónimo disse...

tenho, querida mié, um banho de sol sobre a secretária onde leio este poema que merece um ambiente de velas acesas em redor de tantas palavras de ouro. porque esta casa tem quatro paredes de silêncio e o poema parece ter sido escrito para ela. talvez a ausência não possa responder-lhe, se vier de noite e aqui não encontrar o lume aceso. mas pressinto um silêncio puro rei de todas as respostas. um grande beijinho e mais uma vez obrigada *

Maria disse...

Não conhecia, Mié... mas fico "cliente"... é lindo!
Obrigada por esta partilha.

Beijos

Dona Betã disse...

De nome conhecia.
De ver em antologias e livros por aí.
De ler, não.
Perda reparável.

A tua branca casa é uma vertigem de beleza.
Grato.

hora tardia disse...

subscrevo a última parte do comentário do JG....sábio ele disse o que eu gostaria de ter dito....sobre esta casa branca.


que tu enches de uma rarísima beleza....Mie......


abraço.


Sobre o Amadeu Baptista...apenas isto:

ILUMINADO. ENORME.

ARQUIVO


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