Uma abordagem muito interessante
(Um trabalho da minha amiga Baiana Polá, psicanalista "lacaniana convicta" e muito bem humorada)
E DA PALAVRA FEZ-SE A COISA
SOFTWARE, GENOMA, SINTOMA: DA LÓGICA AO PRODUTO
E DA PALAVRA FEZ-SE A COISA
SOFTWARE, GENOMA, SINTOMA: DA LÓGICA AO PRODUTO
Outro dia uma cliente me contou: "Meu marido ganhou um computador que fala!". E eu andei pensando: qualquer computador fala! É só instalar um programa que faça isso. Mais que isso, hoje em dia e só ir à "net" e "downloudar" um "software".
"Quê?!", me perguntarão os webfóbicos. "Downloudar um software?" Sim, baixar um programa com essa função. Há versões pagas, outras para experiência e ainda as que são totalmente gratuitas. "Gratuitas? Como assim? E o que é um programa?"
Gosto da palavra francesa "logiciel". Uma cadeia de significantes com uma lógica interna. Uma seqüência de palavras que gera vida, faz o computador funcionar, cria uma rotina. Só isso. Assim como o genoma, cadeia de bases nitrogenadas que determina todas as funções das proteínas do nosso corpo. Código. Adenina, guanina, citosina, citosina, citosina, adenina, adenina etc. E da sequência de bases nitrogenadas faz-se a vida. Sim, temos vários "logicieis" escritos em nossos chips. Digo: células.
E como é que uma seqüência de palavras faz o computador falar? Como é que aquela máquina que até ontem só tocava cd hoje sabe compreender "Acesse a internet!"? E não é que o bichinho começa mesmo a discar o número do meu provedor!? Mas afinal, o que é um programa? Acho que já estou fazendo suspense demais! Alguém aí fala "agá-te-eme-elês (html)?
Funciona assim: quando quero instalar no meu site uma maquininha que toque sem parar o tema do Seinfield, recomeçando sempre que a música acaba, escrevo na página de html – um tipo de página carbono que fica por trás da que vemos. Quando quero instalar um contador, basta escrever SRC="counter.bmp" ALIGN="BOTTOM" BORDER="0" ....
No nosso corpo, quando queremos uma amilase, ou olhos azuis, cabelos crespos ou lisos, escrevemos uma seqüência de nucleotídeos no núcleo da célula e voilà! Ou melhor, não escrevemos nada porque tudo já vem escrito como deve ser. Bem...por enquanto ainda não escrevemos... Mas ouvi dizer que já descobrimos e seqüenciamos todas as "letrinhas" que compõem nossos "softwares": o Genoma! Assim, em breve poderemos escrever também! Puxa!
E no mundo mental então! Sabemos que pensamentos podem se manifestar no corpo. Através do recalque, a libido que desencadearia uma ação não aceita pelo indivíduo é desviada e pode gerar paralisia, gastrite, insônia, alergia etc. Sinais e sintomas. Marcas. Para Freud, um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu temporariamente inativa. No dicionário de psicanálise Larousse temos como definição para sintoma um "fenômeno subjetivo que constitui a expressão de um conflito inconsciente". Em 1958, Lacan diz que "o sintoma vai no sentido de um desejo de reconhecimento, mas esse desejo permanece excluído, recalcado". Também explica que "o sintoma é o efeito do simbólico no real".
De qualquer forma, estamos falando de algo que acontece em um nível mental e que tem consequências práticas, sensíveis ou até visíveis em nosso corpo. É que nosso corpo é erotizado pela palavra. Há algo mental, impalpável, que o transforma, que o significa.
De palavras, sem matéria, temos a produção de hormônios, saliva, enzimas digestivas, adrenalina, líquidos sexuais. Se eu disser algumas palavras mágicas, é possível que você fique com água na boca. Ou molhe o sexo. Ou até fique verde de raiva!
A palavra marca, cria, grava como o ferreiro. Ou em linguagem mais poética: Oh! Efêmera distância entre o invisível e o palpável.
Mas voltemos àquilo que foi criado à Nossa imagem e semelhança: o computador. Para fazê-lo falar precisamos das caixinhas de som e
"- Mas o meu tem caixas ótimas e não fala!" Calma leitor! Caixas de som e palavras. Uma seqüência delas. Lindas e enfileiradas, numa ordem rígida, onde uma pequena alteração -Oh! não se atreva! - desanda toda a alquimia.
Bla-bla-bla, bla-bla-bla (em língua de computador, é claro) e pronto, aí está o que ensina meu pc a dizer: "Bom dia, Polá!"
Fico perplexa quando penso nos inúmeros produtos que podemos instalar gratuitamente pela internet. É como se estivéssemos adquirindo bens. Tradutores, toca cds, cds, fotos, despertadores, agendas, livros etc.
Tendo o equipamento básico e alguma memória, temos uma nova "coisa", um produto real a ser usado, que interfere em nossas vidas de forma bem pouco virtual.
Então, quer dizer que um programa anti-vírus, por exemplo, não passa de uma seqüência de palavras? E os leitores mais espertinhos devem estar pensando: "é, os anticorpos também foram sintetizados porque há uma seqüência de nucleotídeos que assim o quis".
É isso mesmo. Ontem eu quis um leitor de imagens, um álbum, num português mais claro, para minha Palminha, minha agendinha eletrônica, ops!, acho que os fabricantes prefeririam ouvir: meu "personal organizer". Entrei na internet e baixei o tal do software. Quando minha linda Palminha escutou aquelas palavras através de seu lindo ouvidinho chamado cabo de conexão com o pc, passou a funcionar também como álbum de retratos! E é esse limite entre coisa e palavra, produto vendável e seqüência de letrinhas disponíveis e infinitamente duplicáveis e sem custo que está confundindo o mundo capitalista.
Como fazer dinheiro com produtos reais - álbuns, cds, tradutores etc - que são fabricados por qualquer um num passe mágico-virtual?
Um exemplo do impasse que tem dado pano pra manga é o Napster, programa que nos dá gratuitamente qualquer música em alguns minutos. "Por que pagar por algo que pode ser gratuita e infinitamente duplicado?"- pensam alguns.
Estamos todos de certa forma equipados para fazer o milagre da duplicação de pães na internet...
E o software proferiu: - Fale! E meu computador falou.
São palavras, nada mais que palavras, que a rigor não chegam nem a ser palavras, são dois números: zero e um. O funcionamento do computador é baseado em dois sinais: zero e um. Imensas seqüências de zeros e uns que codificam letras, que escrevem palavras, que formam programas, que criam produtos.
E pensar que nossa fonte não é binária, pois há quatro bases nitrogenadas funcionando como nossos zeros e uns! O dobro!
E em sete dias, de um hardware, uma placa-mãe, outra de som e um modem, um hacker criou um universo.
"Quê?!", me perguntarão os webfóbicos. "Downloudar um software?" Sim, baixar um programa com essa função. Há versões pagas, outras para experiência e ainda as que são totalmente gratuitas. "Gratuitas? Como assim? E o que é um programa?"
Gosto da palavra francesa "logiciel". Uma cadeia de significantes com uma lógica interna. Uma seqüência de palavras que gera vida, faz o computador funcionar, cria uma rotina. Só isso. Assim como o genoma, cadeia de bases nitrogenadas que determina todas as funções das proteínas do nosso corpo. Código. Adenina, guanina, citosina, citosina, citosina, adenina, adenina etc. E da sequência de bases nitrogenadas faz-se a vida. Sim, temos vários "logicieis" escritos em nossos chips. Digo: células.
E como é que uma seqüência de palavras faz o computador falar? Como é que aquela máquina que até ontem só tocava cd hoje sabe compreender "Acesse a internet!"? E não é que o bichinho começa mesmo a discar o número do meu provedor!? Mas afinal, o que é um programa? Acho que já estou fazendo suspense demais! Alguém aí fala "agá-te-eme-elês (html)?
Funciona assim: quando quero instalar no meu site uma maquininha que toque sem parar o tema do Seinfield, recomeçando sempre que a música acaba, escrevo na página de html – um tipo de página carbono que fica por trás da que vemos. Quando quero instalar um contador, basta escrever SRC="counter.bmp" ALIGN="BOTTOM" BORDER="0" ....
No nosso corpo, quando queremos uma amilase, ou olhos azuis, cabelos crespos ou lisos, escrevemos uma seqüência de nucleotídeos no núcleo da célula e voilà! Ou melhor, não escrevemos nada porque tudo já vem escrito como deve ser. Bem...por enquanto ainda não escrevemos... Mas ouvi dizer que já descobrimos e seqüenciamos todas as "letrinhas" que compõem nossos "softwares": o Genoma! Assim, em breve poderemos escrever também! Puxa!
E no mundo mental então! Sabemos que pensamentos podem se manifestar no corpo. Através do recalque, a libido que desencadearia uma ação não aceita pelo indivíduo é desviada e pode gerar paralisia, gastrite, insônia, alergia etc. Sinais e sintomas. Marcas. Para Freud, um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu temporariamente inativa. No dicionário de psicanálise Larousse temos como definição para sintoma um "fenômeno subjetivo que constitui a expressão de um conflito inconsciente". Em 1958, Lacan diz que "o sintoma vai no sentido de um desejo de reconhecimento, mas esse desejo permanece excluído, recalcado". Também explica que "o sintoma é o efeito do simbólico no real".
De qualquer forma, estamos falando de algo que acontece em um nível mental e que tem consequências práticas, sensíveis ou até visíveis em nosso corpo. É que nosso corpo é erotizado pela palavra. Há algo mental, impalpável, que o transforma, que o significa.
De palavras, sem matéria, temos a produção de hormônios, saliva, enzimas digestivas, adrenalina, líquidos sexuais. Se eu disser algumas palavras mágicas, é possível que você fique com água na boca. Ou molhe o sexo. Ou até fique verde de raiva!
A palavra marca, cria, grava como o ferreiro. Ou em linguagem mais poética: Oh! Efêmera distância entre o invisível e o palpável.
Mas voltemos àquilo que foi criado à Nossa imagem e semelhança: o computador. Para fazê-lo falar precisamos das caixinhas de som e
"- Mas o meu tem caixas ótimas e não fala!" Calma leitor! Caixas de som e palavras. Uma seqüência delas. Lindas e enfileiradas, numa ordem rígida, onde uma pequena alteração -Oh! não se atreva! - desanda toda a alquimia.
Bla-bla-bla, bla-bla-bla (em língua de computador, é claro) e pronto, aí está o que ensina meu pc a dizer: "Bom dia, Polá!"
Fico perplexa quando penso nos inúmeros produtos que podemos instalar gratuitamente pela internet. É como se estivéssemos adquirindo bens. Tradutores, toca cds, cds, fotos, despertadores, agendas, livros etc.
Tendo o equipamento básico e alguma memória, temos uma nova "coisa", um produto real a ser usado, que interfere em nossas vidas de forma bem pouco virtual.
Então, quer dizer que um programa anti-vírus, por exemplo, não passa de uma seqüência de palavras? E os leitores mais espertinhos devem estar pensando: "é, os anticorpos também foram sintetizados porque há uma seqüência de nucleotídeos que assim o quis".
É isso mesmo. Ontem eu quis um leitor de imagens, um álbum, num português mais claro, para minha Palminha, minha agendinha eletrônica, ops!, acho que os fabricantes prefeririam ouvir: meu "personal organizer". Entrei na internet e baixei o tal do software. Quando minha linda Palminha escutou aquelas palavras através de seu lindo ouvidinho chamado cabo de conexão com o pc, passou a funcionar também como álbum de retratos! E é esse limite entre coisa e palavra, produto vendável e seqüência de letrinhas disponíveis e infinitamente duplicáveis e sem custo que está confundindo o mundo capitalista.
Como fazer dinheiro com produtos reais - álbuns, cds, tradutores etc - que são fabricados por qualquer um num passe mágico-virtual?
Um exemplo do impasse que tem dado pano pra manga é o Napster, programa que nos dá gratuitamente qualquer música em alguns minutos. "Por que pagar por algo que pode ser gratuita e infinitamente duplicado?"- pensam alguns.
Estamos todos de certa forma equipados para fazer o milagre da duplicação de pães na internet...
E o software proferiu: - Fale! E meu computador falou.
São palavras, nada mais que palavras, que a rigor não chegam nem a ser palavras, são dois números: zero e um. O funcionamento do computador é baseado em dois sinais: zero e um. Imensas seqüências de zeros e uns que codificam letras, que escrevem palavras, que formam programas, que criam produtos.
E pensar que nossa fonte não é binária, pois há quatro bases nitrogenadas funcionando como nossos zeros e uns! O dobro!
E em sete dias, de um hardware, uma placa-mãe, outra de som e um modem, um hacker criou um universo.
Polá Scalzo
Texto publicado originalmente na "Carta de São Paulo" -
Boletim da Escola Brasileira de Psicanálise- São Paulo e do Instituto de
Pesquisas em Psicanálise de São Paulo
Texto publicado originalmente na "Carta de São Paulo" -
Boletim da Escola Brasileira de Psicanálise- São Paulo e do Instituto de
Pesquisas em Psicanálise de São Paulo
2 comentários:
Fiquei com os chips avariados. É tarde e o cansaço não me deixa raciocinar à medida que leio.
Tenho que voltar aqui. (é um bom texto para reler depois em Janeiro, durante o Open da Austrália...)
Tenho dois amigos cujas cabeças são perfeitos computadores: só funcionam em termos de zero ou um, é impressionante. Só branco e preto, para eles não há sequer cinzentos....
Beijinho e boa noite.
Pois é, em Janeiro temos o open da Austrália...
Um beijo para ti e boa noite
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