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quinta-feira, 31 de maio de 2007

"JUSTIÇA" FEZ JUSTIÇA!!!

Tribunal absolve mulher que matou o marido devido a maus tratos
31/05/2007 - Ag. Lusa

O Tribunal de S. João Novo, no Porto, absolveu hoje uma sexagenária que matou o marido depois de ter sido vítima de maus tratos durante quatro décadas, numa decisão saudada com palmas pelas pessoas que assistiam à leitura da sentença.

Na leitura da sentença, o juiz-presidente do colectivo da 4ª Vara de S. João Novo, João Grilo, considerou que a mulher, Maria Clementina, agiu em legítima defesa e que evitou tornar-se em mais uma vítima de violência doméstica.

O magistrado disse que este ano já morreram em Portugal 39 mulheres vítimas de violência doméstica e considerou que Maria Clementina poderia ter sido mais uma.



A MULHER E A FACA


Ela tinha vários tipos de facas, todas em inox, com o cabo em madeira, porque duram mais tempo e não enferrujam. E quanto mais gastas melhor cortam, dizia sempre ela.

A filha pelos anos ofereceu-lhe um jogo, todas em inox até ao cabo, daquelas que vêm enfiadas nas ranhuras de um suporte em madeira.

Ficavam bem na bancada da cozinha disse ela.

Mas da que ela gostava mesmo, era da sua velha faca com o cabo em madeira, a lâmina curva de tanto gasta.

Aconchegava-se-lhe na mão, como se fosse o seu prolongamento.

E como ela cortava bem a carne de vaca aos cubinhos para a jardineira, as batatas ao meio ou aos palitos, as cenouras, as cebolas que bem que as picava quase sem esforço, deslizava na perfeição.


Naquela noite, como em todas as noites, ela estava na cozinha a preparar o jantar, quando o marido chegou.

Pelo modo como ele entrou em casa, pressentiu que era mais uma noite igual a muitas outras já sem conta.

Já tinha os olhos cansados e secos, a alma completamente vazia.

O coração havia já muitos anos que ele o tinha destroçado.

Há muito tempo que ele não a via como mulher, não a olhava com um resquício de amor ou ternura. Era apenas uma coisa sua.

Naquela noite surpreendentemente, a ela deu-se conta que estava demasiado serena, o seu coração não se assustou com o barulho da porta. Continuou a descascar as batatas.


Ouviu-o a praguejar na sala, uma cadeira a tombar no chão.

Lentamente, virou a cabeça, olhou para a porta e viu-o à entrada da cozinha. Lá estava ele, envenenado de tanto álcool no sangue, de tanto ódio no coração. Continuava a praguejar.

Como de costume ele vinha descarregar a frustração e o ódio em cima dela.

Ergueu o punho cerrado para lho desferir onde a apanhasse, para a deitar ao chão e a pontapear até lhe acabarem as forças.

Mas nessa noite ela olhou para ele, depois olhou para a sua faca de cozinha de inox com o cabo de madeira, e não esperou que ele baixasse o punho. Levantou o dela com a faca aconchegada na sua mão e desferiu-lhe um só golpe no pescoço, um golpe certeiro mesmo na jugular.

Ele ficou lívido, estupefacto. Cambaleou e antes de cair, olhou para ela surpreendido.


Depois de tantos anos foi a primeira vez que a viu.

Lembrou-se que ela era a mulher por quem se tinha apaixonado, e desse amor tinha nascido uma filha, que de tanta idade já ali não morava.

Como o tempo passou e ele não se dera conta.

Afinal ela não estava morta, estava só na cozinha.


A mulher pegou na faca, lavou-a, limpo-a muito bem limpa, olhou para ela, acariciou-a como se acaricia uma amiga e guardou-a.

Nem as autoridades onde ela tantas vezes foi dar queixa do marido, nem as associações que dizem proteger as vítimas, lhe valeram.

Só a sua faca a ajudou a sair daquele inferno.


Desde essa noite, começou a usar as facas que a filha lhe oferecera pelos anos, todas em inox até ao cabo, daquelas que vêm enfiadas nas ranhuras de um suporte em madeira.



MiE/2005
(Conto de Ficção)

3 comentários:

Teresa Durães disse...

credo!

o principal problema da violência doméstica é o parceiro(a) convencer o outro(a) que merece...

o alquimista disse...

Perverso...! A violencia é própria de criaturas básicas...

São sete as luas que regem a magia, o encanto, sete vezes se abre a alma para deixar sair o pranto. Sete serão as palavras que soltam a magia no tempo, sete são, as sinceras lágrimas, soltas em árido campo…

Bom fim de semana

Doce beijo

Mié disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

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